Coisas Não Ditas
Uma parte nossa sempre fica em algum lugar, no fim de um relacionamento, no fim da escola, no fim de…algo. Sempre fica algo para trás, e com certeza levamos algo, mas acredito que é com mais frequência que esquecemos da parte que deixamos e subestimamos sua importância para nós mesmos. Tentamos seguir em frente/superar o evento anterior, eles nunca são iguais, podem até ter um sentimento de “aquele velho amigo”, afinal de contas:
Eu conheço este cheiro
Porém não há como se preparar, não há como saber qual será o próximo fim desse livro de inúmeros capítulos finais. Tomemos o fim radical, a morte. Morrem nossos animais de estimação, algum ente querido, um conhecido distante, um amigo próximo, a criança interior e seus sonhos. Todas essas mortes conectadas ao nosso ser e em graus diferentes de ligação emocional, cada uma provocando uma parte do nosso ser e pobre daquele que crê que a sua indiferença não é ligação alguma, a própria produção de indiferença é uma tentativa de ressentir algo nessa ligação. Enfim, são muitos e mistos os sentimentos de um ser em um momento como este. O que eu quero dizer é que não há familiaridade suficiente em uma vida para simplesmente saber o que fazer quando o fim de algo chega, quando o fim de algo finda e quando fica só o resto. Não existe guia prático para o luto.
O primeiro pode ser simplesmente imprevisível, tudo vai e vem como sempre foi e desse modo, vai e nem vem. Aqui o desavisado louco pode nascer, em constante vigilância para o próximo evento, com medo da própria sombra. Mas e quando sabemos que algo está para terminar? Quando sabemos que algo está para terminar e resolvemos apenas ignorar com ressentimento culpando o(s) outro(s)? Viver com a certeza do fim pode ser tão enlouquecedor quanto não saber, percebe a ironia? Não é tanto sobre a certeza do fim, mas a certeza certa daquele fim, o absoluto. Quando a noção do fim de algo é exata, é que o ser estremece e é exigido o máximo de si, mesmo sabendo-se que não há luta, não há saída, não há outra possibilidade. É necessário viver na não-certeza porque somente nela existe escolha.
O segundo é a realização do fim desse encontro, não mais aquela sala de espera, não mais aquele elevador, não mais aquele latido, não mais aquele sorriso, não mais.
E o terceiro, onde eu realmente queria chegar. O resto, o resto todo. Quem fica depois que se vai? O que trazer? Vem o amor e ficam as dívidas? Para onde foram os abraços? E aquilo que eu esqueci de te falar? E a caneca que eu esqueci de trazer? As coisas não-ditas começam a surgir, quase que como um câncer, se reproduzindo, uma conduzindo à próxima.
Primeiro temos a ideia do fim, depois temos a realização do fim e por fim, o que fica.
Ponho a culpa nesses fins sem término para a constante reflexão de quem posso ser e assim ponho a culpa nos meus arrependimentos de quem sou e quem continuarei a ser. Assim, não existe ser para mim sem arrependimento, aquele que vive sem arrependimento não existe, é só passageiro sem essência. Não existe porque não tem arrependimentos e aí para mim: ou não fez escolhas ou não parou para ser e refletir sobre o que abriu mão ao escolher. Não é uma questão de se tornar obcecado e viver dos seus arrependimentos, de não seguir em frente, mas de estar em contato com o seu “eu”, com o “eu” que se pergunta:
E se?
E daí se é problemático? E daí se essa pergunta te deixa acordado, te faz roer unhas ou puxar cabelos?
Eu quero viver me questionando, quero viver me arrependendo e tendo que fazer novas escolhas, começar novos caminhos sem ter a menor ideia de onde vão dar. Eu me rejeito a me deixar enfeitiçar por qualquer noção de vida ideal. Não me importa nem o que eu quero, nem o que eu tenho, me importa o que vem a seguir e como eu vou viver em meio a isso.
E assim vivo, entre os constantes fins da minha vida até o fim da minha vida.
Devaneio suprido por este som